Naguib Mahfuz

12 abril 2011
Prêmio Nobel de Literatura em 1988, o egípcio Naguib Mahfuz inaugurou romance árabe e tradição de questionamento social
Publicado em 31 de março de 2011


Naguib Mahfouz

Paulo Daniel Farah

Principal escritor a retratar as sociedades árabes e seus dilemas no século 20, Naguib Mahfuz (1911-2006) nasceu na capital do Egito, a cidade do Cairo, cujas ruelas, praças e mesquitas retrata em suas obras como palco constante de questionamentos sociais.

Um pessimismo difuso, oposto ao otimismo tônico do escritor Taha Hussayn, marca as obras realistas de Mahfuz. Sua expressão artística, a princípio neutra na descrição e na crítica, adotou progressivamente o vocabulário da angústia e do desespero.

A partir de 1945, Mahfuz passou a descrever os tempos de crise e de mudanças sociais no Egito (como um microcosmo para a região inteira), a migração acelerada e as relações de desconfiança e cautela que opõem aspessoas a uma sociedade de aculturação. Seus temas mais recorrentes são a descrição da vida cotidiana em bairros cairotas pobres ou burgueses, que ele conhecia bem, e as inquietações humanas.

A fase realista é a mais conhecida de Mahfuz e a mais celebrada, sobretudo porque ele não se desvincula dela completamente. Como destacou o anúncio do Prêmio Nobel, em 1988, a maior parte de suas obras tem um caráter marcadamente realista e são elas que o consagraram como o melhor romancista árabe e pai do gênero. “Mahfuz representa a opinião do cidadão egípcio comum e a consciência do árabe comum onde quer que ele esteja”, resume o crítico literário egípcio Ryad Asmat1. É o realismo do narrador que viveu e sentiu o que descreve. O autor atribui sua tradição realista a escritores como John Galsworthy (1867-1933), Aldous Huxley (1894-1963) e D. H. Lawrence (1885-1930).

Mahfuz formou-se em filosofia em 1934 e iniciou uma tese sobre a beleza no islamismo. Começou a escrever aos 17 anos e, desde então, mais de 50 romances, antologias de contos, roteiros de filmes e adaptações teatrais o tornaram o principal romancista árabe e uma influência fundamental para diversas gerações de escritores, muitos dos quais atualmente questionam a situação política (interna e externa) em seus escritos.

Como disse o autor em entrevista concedida em 1988, “a literatura é, em sua essência, uma pergunta. Se resposta existisse, não haveria necessidade da literatura. O estudo político ou sociológico bastaria”2.

Ao expressar preocupações e anseios humanos, em fusão multicultural, seus personagens revelam-se protótipos universais.

Mahfuz foi o primeiro escritor de língua árabe a receber o Prêmio Nobel de Literatura, e os temas sociais abordados em sua obra são de extrema relevância para o Oriente Médio hoje em dia, a transcender o tempo e o espaço.

Publicado pela primeira vez em 1947, O Beco do Pilão (editora Planeta) é um dos romances mais importantes do escritor, citado no anúncio do Nobel, em 1988. O título inspira-se numa rua da parte antiga da cidade do Cairo que testemunha as aspirações e as tragédias de seus moradores em um período de transição no Egito que até hoje parece estar em andamento.

O espaço desempenha um papel extremamente significativo em sua obra, como se observa em O Beco do Pilão. O beco torna-se o protagonista, desafiador e imutável, e o simples deslocamento de um bairro a outro produz uma ruptura cultural e a entrada numa modernidade discutível, mas inevitável.

Em seus romances, um tema constante é o da inadequação entre o espaço social egípcio e o modo de vida moderno. A extinção de um mundo tradicional leva à constatação implícita de um fracasso.

Comprimido entre o passado e o presente, o egípcio parece paralisado em relação ao futuro, e o pessimismoexpresso em livros anteriores de Mahfuz é levado ao extremo em O Beco do Pilão.

As histórias pessoais retratadas criam uma atmosfera de realismo trágico. Hamida, órfã criada por Umm Hamida, adere ao serviço do Exército britânico de uma forma não oficial: vende seu corpo aos soldados britânicos e aliados. Zayta sustenta-se desfigurando pessoas para que elas se tornem mendigos convincentes e garantam seu sustento com a comissão sobre o lucro do dia de “trabalho”. Espécie de dervixe, o xeique Darwich passa boa parte do dia na entrada de um café, permanentemente perdido em seus pensamentos, interrompidos de forma abrupta por erupções de reflexões filosóficas e proféticas, em geral dirigidas a uma interlocutora fictícia, a “senhora das senhoras”.

Em sua juventude, o xeique Darwich foi professor de inglês em uma escola dirigida por religiosos. Depois, por meio de uma lei modernizadora, a escola passou a ser administrada pelo Ministério da Educação. Como lhe faltavam as características mais rígidas exigidas pela nova administração, ele foi rebaixado e seu salário, reduzido.

A mudança foi excessiva. Paulatinamente, foi se afastando do emprego e da família e acabou se refugiando em si próprio e no café do beco. Suas reflexões são parcialmente feitas em inglês, que, no contexto do beco egípcio, é uma língua totalmente intrusa. “É uma situação bem conhecida na tragédia, que em inglês se diz tragedy e soletra-se: T-R-A-G-E-DY…”, diz o xeique em certa passagem do livro.

Sua voz parece somar-se à de tantos outros personagens que buscam lidar com as condições que lhe são impostas.

Paulo Daniel Farah é professor de língua e literatura árabes na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e tradutor de O Beco do Pilão