“Como são admiráveis as pessoas que nós não conhecemos bem.” Millôr Fernandes

14 abril 2011
Ela pensava nisso como a mais inimitável verdade de sua vida. Era chata, pensava, por que via nos outros as coisas que a chateavam, que tiravam-lhe a paciência, que irritavam-na a ponto de se trancar no quarto e não querer ver a pessoa por pelo menos um dia. E isso era constante, facilmente se entediava e não achava lógico ser assim, enquanto as outras pessoas compreensivas, experientes, vividas falavam em aceitar as pessoas como elas são, falavam em paciência, em temperança.
Nada disso lhe enchia os olhos ou ouvidos. Ficava tudo no espaço mental que ela destinava para clichês, cuja família tinha maior aparição. As tias falavam como matracas sobre cada coisa que ela devia fazer, aprender, ser. Uma menina tinha de saber lavar pratos, cozinhar, arrumar a casa e muito bem feito. E não era para saber fazer isso para si mesma caso um dia precisasse, era pra casar. Um rapaz não quereria casar com uma mulher que não soubesse fazer essas coisas, que não estivesse apta a administrar uma casa.
Ela não queria isso. Nem sonhara, nunca, com casamento. Ela pensava em viagens, em amores com direito a trilha sonora épica, sonhava com conquistas. “Ana é a vencedora no prêmio jabuti”, “Ana vence o prêmio Nobel de Literatura”. E como gostava de ler, lia tudo, de filosofia a textos teóricos de ciências exatas como Física, talvez por isso tenha desenvolvido um senso crítico tão pragmático que fugia à convenções sociais de boa convivência. Não por que não entendesse, mas por que era mais honesto ser honesto. Não tinha amigos, não esses que a gente abraça, com os quais saímos para a praça, tomamos sorvetes ou conversamos nossos sentimentos mais ulteriores. Os superficiais por que ninguém nunca conta seus segredos de verdade. Nunca vi ninguém sem máscaras. Mesmo as mais delicadas.
Os clichês apareciam de todos os lugares. A televisão era o lugar do clichê. Toda família senta à mesa para jantar e todos estão felizes. Ana pensava em quantas famílias como aquelas existiam. Pouquíssimas. Nem mesas. Nem margarina. Tudo fantasia que a ideologia dominante queria incutir. Ela ria para si mesma de todo o teatro, mas não tinha com quem conversar. Saber a verdade já valia a pena. E esse pensar só dava dor de cabeça. Era preciso encontrar alguma forma de expressar isso, essa verdade, esse criticismo. Escolheu a maneira errada.As pessoas. Quando alguém de sua família, escola, ou do círculo que ela frequentava dizia algo conduzido, levado a dizer sem pensar ela se ria. Xingava em silêncio fazendo as caretas que enrugavam tão cedo a sua face. Ela era grave. Ácida. Mas não era amarga. Amava profundamente os seres indefesos como as crianças pequenas que não foram ainda abduzidas para um mundo de burrice. Amava os animais.
Descobriu a mentira quando viu seu herói cair. Quando sua máscara de “melhor pessoa do mundo” caiu na sua frente. Seu pai. Melhor amigo. Exemplo. Mentia para sua mãe. E ela sabia. Viu-se em cima de uma corda finíssima cujos dois sentidos pegavam fogo. Ficou onde estava e deixou-se cair no abismo.
E como essa queda doía. Caia em cima de estacas de cristais que furavam seu corpo. E embora a ferida quisesse fechar as estacas iam aparecendo e abrindo-as novamente. Acostumou-se a doer e a sentir dor.
Descobriu que as pessoas mentem e que essa é uma das coisas que elas dizem que fazem parte da natureza. Não entendia.
Mas não ligava muito para o que os outros diziam. O que Ana sabia era suficiente. E passou a escrever. Transfigurar sua dor era um dom que a literatura havia lhe ensinado e como aprendera bem. Tão bem que seu sonho iniciava.
Tão bem que todo o seu sentimento passava ao papel. Tão bem que quem a lia podia chorar, sofrer e lamentar. Como diria Cecília não era triste, era poeta. Acertara o passo da escrita e como escrevia. Sabia que esse era seu mundo. Ela podia dizer tudo. Sem se preocupar com o entendimento. Ela podia delinear seus sonhos, seus segredos.
Podia criptografar a vida.

Ângela Rezende