As mortes sucessivas

10 abril 2012



Quando minha irmã morreu eu chorei muito
e me consolei depressa. Tinha um vestido novo
e moitas no quintal onde eu ia existir.
Quando minha mãe morreu, me consolei mais lento.
Tinha uma perfuração recém-achada:
meus seios conformavam dois montículos
e eu fiquei muito nua,
cruzando os braços sobre eles é que eu chorava.
Quando meu pai morreu, nunca mais me consolei.
Busquei retratos antigos, procurei conhecidos,
parentes, que me lembrassem sua fala,
seu modo de apertar os lábios e ter certeza.
Reproduzi o encolhido do seu corpo
em seu último sono e repeti as palavras
que ele disse quando toquei seus pés:
‘deixa, tá bom assim’.
Quem me consolará desta lembrança?
Meus seios se cumpriram
e as moitas onde existo
são pura sarça ardente de memória.
Adélia Prado, em “Bagagem”

PROCISSÃO - Zila Mamede


Quando vem a procissão
no seu passo de perdão,

Alcaide, comendador
dominam povo e andor

Cada grupo de irmandade
empunhando uma verdade:

A das Filhas-de-Maria
virgindade em romaria

Do SSmo Sacramento
vermelha de emproamento

Do Senhor Jesus dos Passos
roxo em santos e devassos

Irmãs da Ordem Terceira
terço em mãos de camareiras

Os meninos da Cruzada
fome na barriga inchada

A Banda da Prefeitura
solo e soldo de amargura

Estandartes, confrarias
escondem velhacarias

O Santo vai carregado
pelos donos do mercado

E o povo segue inocente
descalço, nu, paciente:

- A compacta multidão
carente de Deus e pão.

BILHAR


       a Ludi e Oswaldo Lamartine

Na medida exata
em que a noite corre
não fico: me ausento
como quem morre

Entre lousa e livro
- único disfarce
que concedo ao tempo =
mudo-me a face

que, no entanto, vária,
inábil, reprimida,
perde-se no encontro
tátil da vida

Bola sete em rude
pano de bilhar
marco meu sem rumo
jogo-de-amar.

ZIla Mamede

Poesia de Deífilo Gurgel