04 outubro 2011

Para as mães extremosas…


Eu tenho planos definidos sobre as coisas que quero deixar escritas, como se fossem um testamento, as tais “últimas palavras”. Quero terminar um livro que comecei faz cinco anos, com os essenciais da minha filosofia da educação; quero terminar um outro, sobre a estética do envelhecer; quero também escrever um outro, contando aos meus colegas de profissão, terapeutas, aquilo que julgo ter aprendido. Infelizmente, entretanto, a vida está cheia de acidentes que me desviam do meu alvo. Aconteceu comigo essa semana: já tinha esboçado a minha próxima crônica, que seria sobre a escola dos meus sonhos. Mas aí, numa curva do caminho, um demônio se apossou de mim, baralhou meus pensamentos pedagógicos e me ordenou que escrevesse uma coisa horrível que não estava nos meus planos. Refuguei, disse que aquilo eu não escreveria, sabia que seria odiado por quem me lesse, mas não houve jeito. Quanto mais eu resistia mais ele me apertava o gogó. “Se você não fizer o que estou mandando eu não deixarei que você escreva o que você deseja escrever…” Assim, vou escrever o que ele me ordenou escrever, não sem antes pedir perdão aos meus leitores – esperando que eles entendam que não sou eu quem está escrevendo. Estou possuído e só vou escrever o que ele ditar.


“Dedicado às mães fofas, amorosas, extremosas, que só pensam nos seus queridos filhos, de todos os mais bonitos, razão de suas vidas, só lhes desejando o bem e sabendo o que é melhor para eles, não economizando rezas, novenas e promessas no sentido de que eles sejam sempre seus filhinhos queridos, ficando com elas até o fim de suas vidas, como foi o caso da mãe da Tita, do filme ‘Como água para chocolate’. Amam tanto os seus filhos que já nem sobra tempo para os maridos, esquecidos e abandonados, muito importantes, é verdade, indispensáveis mesmo como o forte braço da lei que deve ser acionado sempre que os ditos filhos se recusarem a obedecer às ordens de suas extremosas e amoráveis mães. ‘Você vai ter que se entender com o seu pai!’ – elas ameaçam. De tanto ouvir essa ameaça os filhos acabam por compreender que pais são seres terríveis, que detêm o monopólio do dinheiro e da força física, ogros, tal como está explicado na estória do ‘João e o pé de feijão’ – estória que, sem dúvida alguma, foi escrita por uma pobre e sofrida mãezinha extremosa!
Tudo começa nas deliciosas e inocentes brincadeiras de casinha. Panelinhas, pratinhos, paninhos, tudo arranjado de forma impecável – casinha tem de ser bonitinha. E dentre as coisas arranjadinhas estão as bonecas. Ah! Como é gostoso brincar de boneca. A gente aperta um botãozinho e a boneca chora. Aperta outro e ela ri. Apertado o terceiro, ela fala mamãe. Terminado o tempo da brincadeira a gente desliga o botão da pilha e guarda a boneca na caixa (cometi, por obra do dito demônio que tomou conta de mim, um lapso freudiano terrível que logo apaguei, mas tenho de confessar: minha cabeça ordenou que meus dedos escrevessem ‘caixa’, mas os dedos desobedeceram e escreveram ‘caixão’…), para onde ela vai sem protestar e dorme o tempo que mamãe ordenar.
A brincadeira fica ruim quando a amiguinha vem para brincar e traz uma boneca muito mais bonita que a nossa, com botõezinhos que fazem a boneca andar, cantar, dizer frases inteiras. Aí a mãe da boneca sub-desenvolvida fica triste, não quer brincar mais, sua filhinha querida deixa de ser motivo de orgulho e passa a ser motivo de vergonha, e ela vai chorar com a mãe, dizendo que quer uma boneca igual à boneca super-desenvolvida da amiguinha. Quem quer que tenha dado uma Barbie para a filha sabe que é assim que a coisa funciona, às custas da inveja. Bonecas não têm vontade própria. Elas existem para que suas mães tenham orgulho delas.
A menininha cresce, tem um filho e a brincadeira continua. Ela quer que sua boneca viva seja a mais bonita e tenha um mundo de botõezinhos – para fazer inveja a todas as outras mães. Põe-se a sonhar e a colocar seus sonhos sobre a boneca viva. Sonha com a profissão – sonhos de inteligência, de importância, de riqueza. É preciso freqüentar clubes ricos porque será lá que ela, se for uma menina, encontrará homens ricos que possuem BMWs. E será lá que ele, se for menino, encontrará seus futuros pares de importância. Cuidado especial na escolha do colégio. Deverá ser colégio ‘forte’, pois é necessário ir desenvolvendo o botão que fará com que ele ou ela passe no vestibular. Escola pública nem pensar. Escola pública é evidência de pobreza: boneca mal vestida… E é preciso por na aula de balê, de inglês, de equitação, de judô, de alemão (criança que nunca vai morar na Alemanha e nem ler Goethe no original tem de aprender alemão. Que orgulho dizer: ‘Meu filho me disse ‘Mutti, Ich liebe dich..’)
A história da educação de um filho é a história do fetiço pelo qual os pais e mães vão enredando seus filhos nas malhas dos seus desejos. Pode até ser que tenham, pendurado na parede, o texto do Khalil Gibran, em que ele diz que ‘nossos filhos não são nossos filhos. Os pais são o arco que dispara a flecha. Nossos filhos são a flecha.’ Eu já corrigi o erro do Khalil Gibran, que muito amo. Porque uma flecha, ainda que erre o alvo, vai sempre na direção do alvo. Nossos filhos são flechas que, uma vez disparadas, se transformam em aves que voam para onde querem – para destinos com que seus pais nunca sonharam ou mesmo odiaram. Para evitar que as aves voem para onde querem é preciso engaiolar as aves.
Os pais as engaiolam pela força. Como o fez o pai do jovem do filme ‘A Sociedade dos Poetas Mortos’. O moço queria ser artista de teatro. Mas o pai tinha sonhos mais importantes para ele: médico. Mas o jovem queria voar e vocês sabem o que ele fez para não ficar na gaiola… Filhos são bonecos, não têm entranhas, não têm coração. Devem fazer o que os pais mandam. Como as bonecas, quando o botão é apertado. O que tem suas vantagens. Quem faz obrigado, pela força, aprende logo a lição do ódio. O corpo vai na direção mandada. Mas o espírito voa e sonha com o dia em que, como o João, haverá de cortar o pé-de-feijão.
Aquela pobre menina odiava aqueles laços de fita enormes, gigantescos, com que as mães de antigamente enfeitavam suas filhinhas. Para que? Para que suas filhinhas fossem felizes? Não. Para que elas, mães, ficassem felizes e orgulhosas, mostrando às outras mães suas filhinhas debaixo do laço de fita. Pois a menina não queria laço de fita na cabeça. Mas, como já disse, bonecas não têm vontade própria. A mãe era mais forte. E a pobre menininha ficava horas diante do espelho, achando-se ridícula e chorando. A mãe triunfava. Todos falavam sobre a beleza da fita e da menina. E a menina sofria. A ferida nunca sarou. Hoje, passados mais de cinqüenta anos, ela ainda se lembra… e sofre. É possível perdoar. Não é possível esquecer.
Mas as mães extremosas, fofas e amorosas usam um artifício muito mais sutil e eficiente que a força. O menino de seis anos vê os cabelos já grisalhos da mãe. ‘Mamãe, por que é que seus cabelos estão ficando brancos?’ Responde a mãe, com um sorriso doce: ‘O cabelo preto vira cabelo branco com cada desobediência do filho…’ Aí o menino descobre que ele é o assassino de sua mãe. A mãe, olhando para a filha adulta que não foi aquilo que ela desejava que ela fosse, pergunta-lhe com voz chorosa: ‘Por que é que você me faz sofrer tanto?’ Filha malvada, esquecida das noites mal-dormidas, das lágrimas vertidas – agora ousa viver a sua própria vida. As mães não usam a força. Usam algo mais terrível: o sentimento de culpa que, traduzido da forma mais grosseira, assim se resume: ‘Sofri por você. Agora você tem de viver para mim.’ Quem é fisgado pelo sentimento de culpa perdeu a liberdade, perdeu as asas. Nunca mais voará. Engaiolado para sempre.
Por vezes os pais e as mães mandam os filhos para o terapeuta. Tomam o terapeuta como seu aliado. Acham que o terapeuta é um especialista em por aves selvagens dentro da gaiola. Mas ficam atentos. ‘Meu filho, sobre o que você o seu terapeuta conversaram?’ O moço ou moça, já fisgado pela culpa, não mais tem direito a um espaço interior. Bonecas não têm espaço interior. Ter espaço interior seria trair as noites mal dormidas e as lágrimas vertidas. E aí eles confessam que conversaram sobre a beleza do vôo. Os pais horrorizados descobrem o que não sabiam: que a missão dos terapeutas é dar asas aos que não as possuem e desejam voar… Fim da terapia.”
Ditas essas palavras o demônio me abandonou e eu voltei a ser o que sempre sou…
Rubem Alves