28 setembro 2011

Escrita criativa
Os segredos de escritores e professores de Redação Criativa para a realização de um bom texto

Alceu Luís Castilho


Ler. Muito. Observar. Ouvir. Concentrar-se. Errar, refazer. Mudar de rotina - ou, para alguns, radicalizá-la. Fórmula mágica para escrever um texto criativo não existe. Mas quem lida diariamente com o assunto oferece dicas para uma relação menos traumática com a tela (ou o papel) em branco. Todos são unânimes em apontar o tempo - a paciência, a espera, a experiência - como fator determinante para um bom resultado.

Língua ouviu escritores e professores de Escrita Criativa para identificar caminhos. Aviso: cada um deles tem suas ênfases, características, hábitos - ou manias. Para não dizer que cada um tem sua... criatividade. "Estilo não", minimiza Xico Sá. "Estilo é de Machado de Assis para cima".

A tentativa está no centro do debate. Quem não tenta não escreve. "Qualquer pessoa que deseje ser um escritor, e não está a escrever, não o é", disse uma vez o escritor americano Ernest Hemingway. Seu conterrâneo Ray Bradbury dava uma dica curiosa: escrever pior. "Mais importante que escrever é rever", considerava. Ou, como definiu o irlandês Samuel Beckett: "Tente outra vez. Erre de novo. Mas erre melhor". As três frases foram coletadas por João de Mancelos, um dos maiores especialistas em Escrita Criativa de Portugal.

- O erro faz parte do processo de aprendizagem, tanto quanto o êxito. Não se pode temer o falhanço [fracasso], sob pena de o aprendiz nunca experimentar, nem sair da zona de conforto - diz Mancelos.


Ele e Rosângela Petta - criadora da Oficina de Escrita Criativa, em São Paulo - insistem no papel decisivo da técnica.

- Acredito na epifania, no sopro das musas, mas este deve ser complementado pela técnica (saber criar personagens, descrever locais, gerar suspense, estruturar enredos, etc.), o esforço e a disciplina - avalia Mancelos.

Rosângela cita o escritor gaúcho Assis Brasil, um dos mais atentos no Brasil ao tema. "A escrita boa é fruto da reescrita. E reescrever o texto não é uma derrota".
- Tem de dominar uma técnica para poder transgredi-la - completa a professora.

Ler e ouvir
Jornalista, Rosângela lembra que para ter fluência na escrita é preciso ter fluência na leitura. Essa pré-condição é lembrada por todos.

- Se não for leitor não vai escrever bem nunca - ecoa Xico Sá.

Para Rosângela, a pessoa tem de ler para expandir seu repertório de conhecimento sobre a matéria-prima: a palavra. A questão do idioma é lembrada por Eliane Brum - ganhadora de mais de 50 prêmios de jornalismo com textos reconhecidamente literários.

- A linguagem do brasileiro é sofisticada - avalia.

Eliane identifica a invenção constante de palavras.

- Muitas vezes me vi diante de analfabetos que faziam literatura pela boca - exemplifica.

Todos os entrevistados sempre leram muito. E de tudo. Eliane só deixou de fazê-lo enquanto escrevia sua primeira ficção, Uma Duas - lançada em julho. Stella Florence diz que ler o colombiano Gabriel García Márquez é tão vital para ela quanto se alimentar. Xico Sá foi influenciado por escritores de formação oposta: o comunista Graciliano Ramos, de escrita enxuta; e o conservador Nelson Rodrigues, de escrita "derramada".

Malabarismo
Rosângela lembra que não é preciso reinventar a roda para ser criativo. O escritor argentino Ernesto Sabato costumava citar o exemplo de Franz Kafka em relação a isso. Dizia que o escritor de O Processo não fez nenhuma revolução formal ao exprimir em seus livros as angústias do homem contemporâneo. Mas revolucionou a literatura.

- Ele escreve em ordem direta, não faz nenhum rocambole - concorda a especialista.

Ela diz que muitos costumam confundir criatividade com "ser diferente". Seus alunos de jornalismo na Faculdade Casper Líbero chegaram a pensar em uma revista redonda e em reportagens sem título.

Stella Florence invoca a necessidade de humildade ao citar uma frase de Marcos Rey. Ele definia o ato de escrever como o ato de cortar textos - como faziam, à exaustão, o alagoano Graciliano Ramos e o mineiro Murilo Rubião.

- Sobretudo cortar das linhas o ego do escritor - completa Stella.

Criar surpresas
O português João de Mancelos recomenda que se evite a mesmice, a conformação com a norma estabelecida. Mas assinala que os métodos para desbloquear a inspiração constituem apenas sugestões.

- A sua eficácia varia de pessoa para pessoa. Na escrita criativa, o que é bom é aquilo que funciona para cada um. Não há normas nem a arte pactua com receitas - avalia.

Mesmo numa conferência, diz, o autor pode gerar suspense ao mostrar a forma como recolheu os dados; dinamizar a tensão confrontando autores com opiniões antagônicas; suscitar curiosidade pelo tema, relatando algum episódio curioso; fazer uma surpresa ao introduzir um dado desconhecido da audiência.

- Em resumo, um ensaio pode incluir suspense, tensão, surpresa, tal como um livro policial! Não há razão nenhuma para maçar a audiência - diz Mancelos.

Saber esperar
O tempo de espera é fundamental. Rosângela Petta conta que uma mulher ligou para ela, a fim de dar um curso de presente para o namorado. Mas queria um pacote de apenas duas ou três aulas.

- Isso evidencia uma visão distorcida do processo. Acham que escrever bem é aprender meia dúzia de truques - constata.

Quem lida profissionalmente (ou nos estudos) com textos não pode esperar a vida inteira para entregá-los.  O cronista Xico Sá refere-se ao termo jornalístico para a hora da entrega de um texto como "musa do fechamento" ("fechamento" é o momento de conclusão do trabalho).

- O ideal de todo escritor é pegar uma coisa só e trabalhar a vida inteira. Mas chega uma hora que você tem de entregar, vai do jeito que tá. Senão fica aberto ao infinito.
João de Mancelos lembra que inteligência e vocação variam de pessoa para pessoa:

- Para escrever um bom texto é necessária uma coincidência feliz entre talento, inspiração, saber técnico, esforço, disciplina, oportunidade e até um pouco de sorte. Não é fácil, portanto. Talvez, por isso, os textos bons, cintilantes e capazes de dobrar o cabo do tempo constituam uma raridade, mesmo entre escritores experientes e premiados. Até vencedores do Prêmio Nobel escreveram narrativas menos boas.

Tradição
O Brasil engatinha na oferta de cursos de escrita, diz Rosangela.

- O país tem tradição de diletantismo na literatura. Os cursos de Letras são mais voltados para a crítica literária do que para a construção - afirma a professora.

Mancelos conta que a tradição nos EUA e em países anglófonos vem de 1880. Em Portugal, o interesse nos últimos dez anos é para ele visível, pelo número de oficinas e cursos em universidades, centros culturais, associações e bibliotecas.

- Jovens procuram os conhecimentos técnicos, pois sabem que só o talento não basta. Por outro lado, uma camada mais velha de estudantes vê nos cursos uma hipótese de convívio, ocupação de tempo livre e partilha de ideias - diz ele.

Ele já orientou teses de mestrado e doutorado nessa área e ministra curso obrigatório de Escrita Criativa na Universidade Católica Portuguesa, em Viseu. É autor de Introdução à Escrita Criativa (editora Vega, 2009, já na terceira edição) - e também escritor de poesias e contos. Em seu Twitter, Mancelos se considera 60% pesquisador, 30% escritor, 9% professor, 1% louco. Tal proporção é, claro, um chiste, não uma fórmula. Como todo chiste, sempre tem algum fundamento.

Eliane Brum
"Começo a escrever dentro de mim. Vou ao computador com o texto já em mim. Resolvo os meus conflitos pela escrita"
Tanto na reportagem como na ficção começo a escrever dentro de mim. Sou intuitiva na minha escrita. Dificilmente tenho bloqueios, porque quando vou para o computador a história já está dentro de mim.

O processo é como uma gestação. A reportagem começa em um movimento interno de esvaziamento - da visão de mundo, dos preconceitos, dos julgamentos. Sei que nunca vou me esvaziar por completo - não podemos esquecer que somos seres históricos. Volto preenchida pela voz que é do outro, pela história do outro. Fico com um humor muito particular, não converso por ninguém. Chego de viagens, de experiências incríveis e só consigo falar depois de escrever.

Na ficção é outro processo: o de ser possuído pela própria voz, pelas vozes do seu subterrâneo que você nem sabia que tinha. Também é uma apuração - dos seus interiores. Ela também começa dentro de mim. É um processo totalmente solitário. É preciso aguentar a angústia.

Há certas realidades que só a ficção suporta. Vem a necessidade de outra voz. E a necessidade se transforma em perturbação e vira uma insônia crônica. Escrevo ficção porque preciso. Ela vem dessa maneira. É um processo muito perturbador, dessas vozes. Vêm de dentro de mim. Mexo muito pouco depois. Releio e vou mexendo, mas uma mexida sutil: troco uma palavra ou outra, uma vírgula ou outra. Escrevo quase o texto definitivo. Sou tudo aquilo que vivi. Como repórter, escutei histórias nas mais variadas geografias. Às vezes sinto-me multidão - sinto-me habitada por essas vozes. Único momento da vida que não li todo dia foi quando escrevi o romance - pegava o livro e largava. Estava morando nessa ficção.

A literatura não é só uma decisão, mas uma necessidade. Não tive escolha. Se eu não escrevesse minha vida ficaria inviável. Resolvo todos meus conflitos pela escrita.

Stella Florence
"Escrever é cortar o ego do escritor. A técnica deve misturar-se à criação sem que percebamos"
Há uma frase atribuída ao Rubem Fonseca que considero perfeita: "Escrever é um labirinto cuja dificuldade não é encontrar a saída, mas a entrada".
Quando se encontra a entrada do texto, tem-se tudo - e não há como forçar esse encontro.
Eu costumava organizar notas, blocos, cadernos, até perceber que eu jamais esquecia o que realmente iria virar texto. Agora eu deixo que a memória funcione como um filtro.
De resto, trabalho todos os dias, em horários flutuantes.
Não tenho manias ou necessidades externas. Preciso apenas de concentração (isso pode acontecer em casa, num aeroporto, num bar, desde que não falem comigo).
No começo da carreira eu me dedicava mais a textos de cuja qualidade não estava bem certa, hoje isso não acontece mais. Se ele não se coloca logo de pé, o abandono rapidamente. Já os textos que vingam costumam ser razoavelmente editados.
Marcos Rey dizia: "Escrever é a arte de cortar". Concordo. Sobretudo cortar das linhas o ego do escritor. O escritor profissional, com prazos a cumprir, escreve (e bem) mesmo sem inspiração e o leitor não percebe a diferença. Mas essa máxima vale apenas para textos curtos - seria impossível fazer um romance sem inspiração e prazer.
A técnica se mistura à criação sem que percebamos. Apenas quando a inspiração desaparece e é preciso entregar o texto é que a técnica tem de dar conta do recado sozinha.
Nunca tive ninguém na infância e adolescência que me podasse ou me incentivasse. Mais tarde, tive o prazer de receber conselhos preciosos de amigos escritores.
Hoje o que mais me influencia - não no texto, mas no prazer pela arte de escrever - é Gabriel García Márquez. Ler Gabo, para mim, é tão vital quanto me alimentar - e, não, isso não é um exagero.

Xico Sá
"Uma boa abertura é fundamental para vencer o déficit de atenção do leitor de hoje"
Nessa correria de hoje está todo mundo com déficit de atenção. Uma boa abertura é fundamental para abrir a porta ao leitor. Sem um bom começo há mais dificuldade na leitura. Penso numa frase de maior impacto para prender o leitor.

A linguagem com termos pouco usuais funciona, chama a atenção. No texto de internet, que é para o povo mais apressado ainda, jogo adiante dois ou três significados do termo, até brincando com ele. Para livros não tenho essa preocupação, pois imagino um leitor com mais reflexão, que possa ter o entendimento por ele mesmo. São expressões às vezes regionais, que eram usuais no português em desuso.

Acredito que tenha diminuído muito o tamanho do repertório no Brasil.

Quando o texto não sai, às vezes dou uma caminhada.

Vou à padaria, tomar um café, esqueço-o. Ou então escolho livros indiscriminadamente, folheio um ou outro, de qualquer gênero.

É como se fosse um aquecimento do cérebro: você pega um ritmo. Uma esteira de ginástica para aquecer o cérebro meio desnorteado.

Inspiro-me tanto em Graciliano Ramos, pela secura do texto, como em Nelson Rodrigues, pelo contrário: por adjetivar, não ter medo do derramamento.

Tenho nas crônicas repetições, que funcionam como um mantra - saem de uma crônica e entram na outra.

Escrevo muito sob pressão, sob encomenda, prazo de entrega. Não posso me dar ao luxo de deixá-lo dormir ali. Tenho essa questão da pressa. Sou sobretudo um cronista.

Há também a preocupação de fechar com boas frases. Não deixo o leitor sem uma satisfação final.

Penso em uma frase que fique na cabeça do cara. Algum exagero, alguma hipérbole que fique martelando em sua cabeça.