Sobre a saudade

02 novembro 2011
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- Sobre se há vida depois da morte: Nesta semana, quando as almas piedosas fazem jejum e meditam sobre a paixão e a ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, e as almas não piedosas se entregam a rituais gastronômicos de devoração de chocolate, achei apropriado informar os meus leitores sobre aquilo que sinto e penso acerca da vida após a morte. Meu coração está tranquilo e não há dúvidas que o perturbem porque são duas, apenas duas, as possibilidades à nossa frente. Primeira possibilidade: há vida após a morte. Estou tranquilo porque, se há vida após a morte, é porque há um Poder Misterioso que a garante, poder esse a que alguns dão o nome de Deus, sem saber o que ele seja. No caso de haver esse Poder Misterioso, é minha tola convicção (todas as convicções são tolas) de que ele é só amor. Não estou sozinho nessa crença, tendo a meu favor o testemunho de profetas, místicos e poetas. Sendo só amor, é claro que a vida após a morte será uma realização do amor. A ideia de que o Poder Misterioso é um torturador que mantém, para prazer próprio, uma câmara de torturas sem fim chamada inferno, é uma calúnia espalhada pelo seu inimigo. Mas, o que é a realização do amor? O amor se realiza quando recebemos de volta as coisas que amamos e perdemos. É por isso que sentimos saudade. A saudade é a nossa alma dizendo para onde ela quer voltar.
Assim, em havendo uma vida após a morte, estou certo de que voltarei a subir em jabuticabeiras, a brincar em riachinhos, a balançar no balanço amarrado no galho da mangueira, a comer ora-pro-nobis refogado com carne de porco, angu, feijão e pimenta, a fazer virar a locomotiva maria-fumaça no virador, a empinar papagaios em tardes de céu azul, a catar flores de paineira para com elas fazer soldadinhos... Que mais posso desejar? Como disse a Maria Alice, deve haver tantos céus quantas pessoas há. Meu céu não é igual ao seu. Nem poderia ser. Nossas saudades são diferentes. Em torno de cada pessoa constitui-se um universo. Dizem os astrônomos que há muitos bilhões de anos (para mim não faz a menor diferença se são bilhões ou milhões, porque esses números são impensáveis) houve um estouro gigantesco, o Big-Bang, a partir do qual foram projetados no espaço sem fim os astros celestes que hoje formam o universo que conhecemos. Nada impede que haja infinitos outros, além dos nossos telescópios. Pois eu acho que não foi só isso: todos nós fomos também projetados no espaço sem fim, cada um de nós é uma estrela em volta da qual se forma uma nebulosa espiralada... Essa é a primeira e deliciosa possibilidade. Segunda possibilidade: não há vida após a morte. Nesse caso a morte significa que vou voltar ao lugar onde estive por todo o tempo infinito passado, inclusive no Big-Bang. Esse período de bilhões de anos não me foi doloroso, não me fez sofrer, e nem demorou a passar. E poderei, então, imaginar que o evento maravilhoso do meu nascimento a partir desse caos indefinido poderá se repetir daqui a um bilhão de anos, mas não sofrerei e nem ficarei impaciente, porque estarei mergulhado no sono profundo da não existência. Assim, por que ter medo? Medo eu não tenho. Tenho é tristeza porque esse mundo é muito bom e quereria continuar a fazer minhas coisas por aqui. Pelo menos por agora é isso que sinto. Pode ser que eu venha a mudar de idéia. Fernando Pessoa escreveu um poema que vai assim: “Tenho dó das estrelas, luzindo há tanto tempo, há tanto tempo... Tenho dó delas. Não haverá um cansaço das coisas, de todas as coisas, um cansaço de existir, de ser, só de ser, o ser triste brilhar, ou sorrir... Não haverá, enfim, para as coisas que são, não a morte, mas sim uma outra espécie de fim, ou uma grande razão – qualquer coisa assim como um perdão?” Pode ser que eu venha a sentir esse cansaço e venha a desejar um fim. Mas ainda não me sinto cansado, agora.



(Rubem Alves, Correio Popular, 31/03/2002)