Porque a alma não é pequena - Os mosaicos de Fernando Pessoa

13 junho 2011
Kalliane Amorim

(Professora - IFRN Campus Apodi)




Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

(Álvaro de Campos in Lisbon Revisited – 1923)


Em nossa tradição cultural, já é costume se comemorar aniversários de nascimento e de morte de personalidades artísticas, que, em muitos casos, também se transformam em bustos ao centro de praças, em estátuas, como fizeram a Drummond, ou, prática ainda mais comum, em nomes de ruas e avenidas. Será mesmo este o destino fatal dos literatos? Será que, afeitos ao comodismo, lembraremos apenas seus nomes e esqueceremos suas obras, justo o que há de essencial?
Fernando Pessoa era um dos que acreditavam nessa realidade, tanto que toda a sua poética se voltava a questões estritamente existenciais: Nada fica de nada. Nada somos. Tanto que, em vida, como vários outros, não teve o reconhecimento que merecia. Somente sete anos após sua morte, sua obra começou a ser publicada e estudada, trabalho que ainda se encontra longe de uma conclusão, afinal todos os dias surgem novas interpretações, novos estudos sobre sua poética e, em especial, sobre o fenômeno da heteronímia.
O fato de o poeta ter criado, desde a infância, mundos e personagens imaginários, e ter feito, sequiosamente, sua busca espiritual por uma compreensão da Vida nas mais diversas filosofias, levaram os estudiosos a propor explicações que vão da esquizofrenia ao espiritismo, explicações estas que apenas constituem em tentativas de desvelamento da amplitude que Pessoa alcançou.
Em janeiro de 1935, mesmo ano de sua morte, o poeta envia uma carta ao crítico Casais Monteiro esclarecendo o surgimento da heteronímia. É a partir desse documento que se sabe do “dia triunfal” de sua vida, 8 de março de 1914, quando ele escreve O Guardador de Rebanhos, assinado por Alberto Caeiro, e Chuva Oblíqua, do próprio autor, em resposta aos poemas do mestre, Caeiro.
Até hoje, as “criações” de Fernando Pessoa, que juntas contabilizam mais de setenta, intrigam pesquisadores de sua obra. Contudo, diante dessa multiplicidade poética, parece-nos mais oportuno conhecer o seu “rebanho de palavras” do que fazer especulações acerca da gênese de Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos ou dos outros tantos criados pelo autor.

O poeta, o fingidor

Nascido em Lisboa, em 13 de junho de 1888, Fernando Antônio Nogueira Pessoa – nome inspirado em Santo Antônio, cujo nome leigo era Fernando – ficou órfão de pai aos cinco anos. Aos sete, escreveu sua primeira quadrinha, À minha querida mamã, e foi morar em Durban, na África, em virtude do casamento de sua mãe com o cônsul português João Miguel Rosa. Sua formação em literatura inglesa foi fundamentada nos dez anos que lá passou. Após esse período, retorna à Lisboa para cursar Letras, faculdade que abandonaria dois anos depois para trabalhar como correspondente estrangeiro.
Em 1912, surgia definitivamente no meio literário, através da revista A Águia, dirigida pelo poeta Teixeira de Pascoais. Nesse mesmo ano, conheceu Mário de Sá-Carneiro, de quem se tornou amigo íntimo. Desde então, a literatura tornou-se-lhe inseparável: vieram os heterônimos e suas polêmicas sobre o fazer poético; a fundação da revista Orpheu, responsável pela introdução das vanguardas em Portugal; o primeiro namoro com Ophelia de Queirós, do qual sairiam as Cartas de amor, publicadas em 1978; e um prêmio de “segunda categoria” com o livro Mensagem, uma declaração de amor a seu país, única publicação de livro em vida, em 1934.
Em novembro do ano seguinte, Fernando Pessoa estaria internado no Hospital São Luís devido a uma cirrose provocada pelo álcool. Sua última frase resume o enigma que perpassou toda a sua vida: I know not what tomorrow will bring (Não sei o que o amanhã trará).
Não há dúvida de que tal enigma tenha se infiltrado em todo o Pessoa, talvez até tenha sido a causa da fragmentação de seu eu e do desenvolvimento de uma poesia profundamente intelectualizada, distinta e singular entre as demais de nossa tradição literária. Intitulando-se um fingidor, o poeta deixou-nos a difícil missão de decifrá-lo. Sim, porque além de considerá-lo hermético, a crítica de tal modo o endeusou, que muitos leitores ou se contentam em memorizar-lhe alguns versos ou desistem perante a mais ínfima tentativa.
Apesar de todo o mito que o cerca, num aspecto há de se concordar: a universalidade de Fernando Pessoa advém de sua capacidade de ser intimamente regional e individual. Basta lembrar os versos de Caeiro sobre o Tejo e o rio de sua aldeia, ou do ortônimo no poema Isto: Eu simplesmente sinto/ Com a imaginação./ Não uso o coração. Aliás, o que fizeram os universais senão cantar a si mesmos e a seu lugar?
Além disso, ressalte-se a insistência com que Pessoa nos põe a pensar cada verso: subversivo nas idéias, soube ser clássico na pena – um domador da gramática, desafiando-nos qual Esfinge. Detalhe: se a Esfinge nos devora, Pessoa abre um leque, uma “porta ao pé de uma parede sem porta”, e nos convida, absurdamente, a entrar.

O mar universal e a saudade

Na nota introdutória de Mensagem, Pessoa declara: “Cada vez mais ponho na essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade”. Essa idéia, que perambulava em seu ser desde os princípios de sua vida literária, quando anunciou o surgimento de um “supra-Camões”, que não seria senão ele próprio, fê-lo compor, ao longo de 21 anos, a obra anteriormente citada.
O poeta negava ter tido interesse por Camões, mas a verdade é que em sua fonte foi beber para cantar os homens de sua terra, dos trovadores aos navegadores, num tom grandioso e pessoal, pois que faz parte do povo a quem exalta, o que dá à obra um caráter ao mesmo tempo épico e lírico.
Dividida em três partes – Brasão, Mar Portuguez e O Encoberto – Mensagem segue uma seqüência que mostra os três grandes momentos históricos da nação lusitana: o prenúncio da glória, no qual o autor fala desde a posição estratégica do país e a influência da antiguidade clássica no período vivido até os nomes das personalidades portuguesas, como D. Diniz, o rei trovador, e D. Sebastião, por quem a nação muito esperou após a batalha de Alcácer-Quibir; a glória em si, no qual se enfatizam a própria navegação e a conquista do Ocidente, terminando com uma “Prece”, que funciona como prenúncio da parte seguinte; e o “nevoeiro” da glória, em que melancolicamente se retrata um Portugal de lembranças, onde “Deus não dá licença” para maiores viagens de quem “foi outrora Senhor do Mar”, o que sutilmente lembra o episódio do Velho do Restelo na obra de Camões.
Vejamos, por exemplo, três poemas retirados de cada uma das partes de Mensagem:

AS QUINAS - D. Sebastião, Rei de Portugal

Louco, sim, louco, porque quiz grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Porisso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nella ia.
Sem a loucura, que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadaver addiado que procria?


HORIZONTE

Ó Mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mysterio,
Abria em flor o Longe, e o Sul siderio
Splendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa da longínqua costa –
Quando a nau se approxima ergue-se a encosta
Em arvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, ha aves, flores,
Onde era só, de longe a abstracta linha.

O sonho é ver as fórmas invisíveis
Da distancia imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esperança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A arvore, a praia, a flor, a ave, a fonte –
Os beijos merecidos da Verdade.


OS AVISOS – Terceiro

Screvo meu livro à beira-magua.
Meu coração não tem que ter.
Tenho meus olhos quentes de água.
Só tu, Senhor, me dás viver.

Só te sentir e te pensar
Meus dias vacuos enche e doura.
Mas quando quererás voltar?
Quando é o Rei? Quando é a Hora?

Quando virás a ser o Christo
De a quem morreu o falso Deus,
E a dispertar do mal que existo
A Nova Terra e os Novos Céus?

Quando virás, ó Encoberto,
Sonho das eras portuguez,
Tornar-me mais que o sopro incerto
De um grande anceio que Deus fez?

Ah, quando quererás, voltando,
Fazer minha esperança amor?
Da nevoa e da saudade quando?
Quando, meu Sonho e meu Senhor?

Os três poemas apresentam, claramente, a seqüência escolhida pelo autor. No primeiro, no qual o eu-lírico é o próprio rei, vemos o ideal que moveu o povo português durante a Renascença: a vontade da grandeza, tomada por muitos como loucura, principalmente naqueles tempos quando aventurar-se no mar poderia significar a própria morte.
Mas “sem a loucura que é o homem”? O próprio Pessoa responde à pergunta noutro ponto do livro: Triste de quem é feliz!/ Vive porque a vida dura./ Nada na alma lhe diz/ Mais que a lição da raiz - / Ter por vida a sepultura. Essa loucura, esse sonho de conquista que inquietava a alma dos portugueses, tanto se fortificou que, como vemos no segundo poema, a nação proclamaria a descoberta e o domínio do além-mar. Antes dela, o mar não era nada senão medo; depois dela, o Longe se abria aos olhos dos detentores de tal loucura e aos demais que os imitavam.
Interessante é perceber que mesmo enfocando uma realidade particular, Pessoa dá a seus versos uma conotação de coletividade: o homem é movido a sonhos. Enquanto os tem, a vida dura, como bem descreve o último poema: após o período áureo da navegação, veio a decadência, “esse fulgor baço da terra”; mas ainda assim os lusitanos esperam despertar quando o Senhor – uma explícita referência ao rei desaparecido – trouxer o Sonho de volta.
Mensagem torna-se, assim como Os Lusíadas, uma apaixonada exaltação ao povo português, estendendo-se de maneira simbólica a todo homem que se alimenta de sonhos e, obviamente, de realizações. Diferentemente do que muitos afirmam, sua poética não é impossível de ser compreendida. Basta seguir o primeiro conselho do poeta na nota preliminar do livro: é preciso, antes de tudo, ter simpatia pelo símbolo, condição fundamental para o entendimento. E navegar pelo Pessoa com essa mesma simpatia, como exercício para permitir-se fruir a beleza que cada poema encerra.



Sou diverso no que informe estou
- Fernando Pessoa e o Mestre -


Tendo absorvido o passado lírico português nos poemas de Mensagem, Fernando Pessoa o fez, também, no seu Cancioneiro, popularmente conhecido como sua obra ortônima, vocábulo este que mais despista do que esclarece o mistério de quem assim se referia a seus outros “eus”:

“Não sei, bem entendido, se realmente não existiram ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos.”

De qualquer forma, debruçando-nos sobre a sua própria poética, se é possível afirmar tal conceito, o que se percebe é tão-somente a angústia de quem não se sabe, numa ânsia de definir a si mesmo e à poesia. E isso numa organização analítica, num raciocínio meticuloso, em versos que podem confundir o leitor desavisado.
O poeta concebia a Arte como uma sensação de segundo grau, como bem afirmou no seu antológico Autopsicografia, uma leitura de sua psique:

“O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente,
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.”

As dores de que ele fala não são as sentidas, as reais, mas estas de maneira recriada, “fingida”, compreendendo-se fingimento como algo inerente à capacidade artística. É assim em toda arte: toma-se o real como objeto de labor, desautomatizado, mas a essência é outra. Daí refletir o mundo não como é, porém como pode ser, o que provoca em nós, leitores, a “saudade” desse mundo não vivido.
Segundo Massaud Moisés, professor titular da USP, além de ter como fundamento o “fingir”, a poesia pessoana aborda a união entre o sentir e o pensar, e o uso constante do paradoxo, que refletiria o próprio desconcerto do mundo. Como exemplo dessa produção tão rica, tomemos o poema a seguir, escrito em 1914, retirado do Cancioneiro:

Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez,
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anônima viuvez,

Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida.
E canta como se tivesse
Mais razões p’ra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente ‘stá pensando.
Derrama no meu coração
A tua incerta voz ondeando!

Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!

Notadamente metrificado e rimado, longe dos padrões “modernos”, esse poema tem os tons de uma lírica singela, baseada no desejo do eu-lírico de ser outro. Essa realidade, em Fernando Pessoa, chega a ser irônica: ele, que foi tantos, querendo, pela voz do poema, ser uma pobre ceifeira, viúva, ignorante da pesada ciência do mundo, mas, em contrapartida, conhecedora da brevidade da existência.
Por que o poeta “inveja” essa mulher? Por que alimenta esse desejo de anonimato e simplicidade? Esse querer apegar-se ao céu, ao campo, à canção? Não estaria aí o gesto do discípulo em consonância com os ensinamentos do mestre, Caeiro, que ele mesmo escolheu para si?
Se pusermos um olhar atento sobre O Guardador de Rebanhos, certamente encontraremos respostas para esses questionamentos. O Intérprete da Natureza, como se auto-intitulou Caeiro, deixou como mensagem o aprender a olhar, o que exige um estudo profundo, uma “aprendizagem de desaprender”. E não é exatamente isso que procuram fazer todos os verdadeiros poetas: desautomatizar as coisas do mundo para vê-las no seu âmago? Retornar à sua natureza primitiva depois de despi-las das idéias que as ocultam?
Pessoa vê no anonimato da ceifeira a poesia que se resguarda em tudo o que existe, seja na realidade, seja no pensamento, e que só é despertada à medida que desaprendemos a ver como costumamos. E mais do que isso, o poeta não apenas vê, como sente, e os seus sentimentos, as suas sensações, se confundem com o pensar, assim como diria o pastor de idéias no poema nº IX:

O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Nesses poucos versos, todo o ideal de Caeiro: a realidade não se apreende só com idéias; elas são necessárias, porém mais importante é ter ouvidos e amar a Natureza, é fazer dos sentidos a ponte para se pensar o mundo, é aprender a ver, porque só assim o poeta pode tomar para si a seguinte afirmação: sou do tamanho do que vejo, e não do tamanho da minha altura.
Nos versos de Pessoa, o exemplo de quem se tornou discípulo de um mestre interior, mas também mestre de si mesmo, na profusão de heterônimos que, menos do que nublar o entendimento do leitor, transparecem a grandeza do poeta que precisou sentir tudo para sentir seu próprio eu.

Passo e fico, como o Universo

Depois desse pequeno itinerário pelo universo pessoano, voltemos à indagação inicial: é justo enxergar escritores dessa estirpe apenas como nomes de ruas ou edifícios públicos, como bustos em praças ou quadros de museu? Obviamente que não. Seria uma afronta à cultura mundial.
Por isso não nos deixemos permanecer presos às frases memorizadas, ao fato de conhecer o nome dos três heterônimos, quando o poeta foi muito mais, ou à comodidade de saber que Fernando Pessoa era português e modernista.
Aprendamos a definir as pessoas através do olhar com que as miramos interiormente, através daquilo que elas amam. Procedendo assim, permitiremos a nós mesmos a aventura de descobrir o universo do outro. Na vida, como na literatura, é possível desvelar nosso mistério deitando o olhar no mistério que nos observa.